segunda-feira, 30 de março de 2015

As Quatro Dimensões da Escrita

“Literatura” é a palavra utilizada como o conceito de representar qualquer tipo de realidade que rodeia o artista e que, por ele mesmo, é convertida em conjuntos de fragmentos linguísticos que se interpretam no seu conjunto total.
Ao longo do tempo, a arte de escrever tem sido aceite socialmente de acordo com as correntes literárias da época em questão (como, por exemplo, o romantismo, realismo ou mesmo o modernismo), contudo, é irrefutável a autoexpressão contida e, por vezes, escondida entre as linhas.
A arte que constitui a escrita não está presente na qualidade do texto, na profundidade das palavras ou mesmo nos efeitos utilizados para “emoldurar” as frases (estou a falar de recursos estilísticos – como o próprio nome denuncia -, na escolha de organização ou modelo de referência – se é conto, poesia, novela, romance, …).
Quando observamos uma pintura, é fácil reparar na astúcia do autor, nas suas pinceladas, nas cores utilizadas ou até nos métodos mais invulgares que passam despercebidos ao olho inexperiente. Mas, desde o início ao fim, é a imagem total que memorizamos e, por sua vez, origina questões como “Qual terá sido a inspiração para este quadro?”, “Que estava o pintor observando ou idealizando?” e mesmo às vezes “Será que o uso destacado de azul remete para a infelicidade do artista?”; e isto são apenas exemplos.
A verdade é que acabamos sempre por querer viver e experienciar o contexto psicológico do artista: entrar dentro da sua mente e compreender a sua arte, como na matemática 1+1 ser 2, nu e cru.
E a verdade nua e crua é que, tal como estes objetivos são inalcançáveis, o mesmo se passa na arte de escrever e toda a sua obra envolve o eu-interior do escritor: as suas opiniões, as suas emoções e sentimentos, o seu prazer e a sua dor.
Já tinha Fernando Pessoa chegado à conclusão que a poesia era um fingimento que se dividia em quatro abordagens: a dor sentida, a dor escrita, a dor lida e a dor sentida pelo leitor (“Autopsicografia”). Eu venho aplicar essa maravilhosa teoria ao mundo da escrita e generalizar e aprofundar essas quatro dimensões a toda a literatura.
Começo primeiro por denunciar a extrema obsessão de Fernando Pessoa relativamente ao sofrimento. Não negando as quatro dores mencionadas, venho apenas abranger, não só a dor, mas como toda a vastidão de emoções guardadas na mente do artista: a felicidade, a raiva, a inveja, a angústia, a euforia, o cansaço, etc.
Então, podemos avançar para as quatro dimensões da escrita diretamente:
A primeira dimensão é a dimensão da emoção: o momento preciso em que surgiu um fogo invisível dentro do artista que o levou a querer escrever – a chamada inspiração. Já a segunda dimensão envolve o processo de transformação das emoções sentidas anteriormente num texto: ocorre uma metamorfose entre o abstrato para um concreto que tem como afinidade descrever o abstrato, sempre em relação intima como o subjetivo do autor.
Posteriormente, a terceira dimensão é o que o leitor entende pelo que está escrito, terá que interpretar todas as palavras escritas e dar-lhe um significado. Pela constituição da psique humana, o leitor irá recorrer às suas próprias memórias e conhecimentos para poder recriar a ideia original expressa. Sendo assim, é criada esta dimensão que excluí quase na totalidade a presença do escritor.
Finalmente, a quarta e última dimensão, que se inicia ao mesmo tempo que se lê a primeira palavra, continua quando pousamos o livro/folha/ e nunca termina, ou seja, a dimensão em que as emoções expressas no texto são transformadas em emoções do leitor, são gravadas para sempre e influenciarão os comportamentos e atitudes futuras.
Retomando ao curso principal desta minha crónica, as quatro dimensões da escrita são uma teoria que para além de explicar o conteúdo psicológico, mental e personalizado do texto, explicam o porquê de ser impossível alcançar as respostas às perguntas acima referidas. As quatro dimensões da escrita são uma prova que é impossível alcançar o eu-interior do artista e que a arte reflete apenas um grão de toda a areia do inconsciente humano.

E a arte de escrever está precisamente na beleza do desconhecido e na maneira como ele abrota, vem ao de cima e se liberta sem nunca conseguirmos compreender bem como e o que realmente significa.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Ciúme


Olhou, estupefacta, para o que tinha na mão: um pedaço de papel, vulgar fotografia, tão simples e vulnerável a ser despedaçado nas suas próprias mãos tinha acabado de a despedaçar a si.
Logo agora, tão segura e convencida de um amor eterno. Logo agora, os ciúmes se apoderavam dela, fervilhando no seu peito e causando-lhe a maior dor e sofrimento imaginável. Enquanto uma outra se apoderava da mão do seu suposto amante eterno.
E, tomada pela sensação poderosa do desconsolo, deixou-se cair sobre o chão.
Trémula, sentia pequenos suores frios percorrerem-lhe o corpo, uma dor latejava na sua cabeça e a visão tornava-se cada vez mais turva. Levou as mãos à cara, convencendo-se que não estava a chorar, enquanto largava soluços involuntários do choro comprimido.
Sentia-se humilhantemente suja. Sentia-se pior dado à sua reação momentânea do que ao motivo que a fizera traduzir desgosto em lágrimas. De um certo modo, sentia-se a criatura mais ignorante à face da Terra e, assim consequentemente, a mais enraivecida (consigo própria).
Aí, os seus punhos cerraram-se sobre si, deixando as unhas cravarem-se nas palmas das suas mãos e mordeu o lábio inferior, reprimindo a sua angústia.
Os seus olhos estavam encarnados, esbugalhados e, contrariamente ao que estava a sentir, vazios. A sua cara apagou qualquer vestígio de fúria, ultraje ou melancolia que ainda há poucos momentos sentira e o seu corpo murchou, abatendo-se no chão frio.
Mergulhava agora num transe de reflexão. Os seus sentimentos e emoções tinham tomado tanto o seu estado físico que, com tanto peso emocional no seu âmago, nem chorar, nem gritar, nem partir a mobília toda do quarto a iriam ajudar a expelir as vocações malévolas da sua cabeça.
Precisava de se proteger. Precisava de aguentar a pressão. Precisava de pensar.

Amar punha-a doente.

Não o amar controlado. Não o amar que é analiticamente estudado, preparado e voluntário. Não o amar que se podia limitar em barreiras de segurança contra qualquer fonte de pânico. Seja ela ciúme, inveja, traição ou carência de sentimento.

Era um novo amar.

Um amar que se opõe a qualquer defesa ética e moral. Opõe-se aos limites psicológicos da sanidade e bem-estar.

O amar que tão fortemente a consumia, num grito de desejo por qualquer toque, palavra ou gesto. O amar que transformava tudo numa utopia irreal de um amor platónico, num sonho de poeta mal-amado, numa obra lírica de romance impossivelmente perfeito. O amar que, ao mesmo tempo, a endoidecia numa obsessão paranoica por amar e ser amada.

Esse amor é vontade, é ânsia, é desejo e é querer incessantemente, incondicionalmente, plenamente, inconscientemente, involuntariamente.
Esse amor é enlouquecedor.

E chorou. Por amar tanto que não havia mais anda a fazer.

Chorou até adormecer.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Labirinto Mental (II)


Caminhei inocuamente perante a estrada negra sob os meus pés. O alcatrão ardia dentro de mim, como um mundo paralelo. Qualquer coisa o podia fazer, numa noite escura e fria como aquela, iluminada pela lua pálida. Caminhei, vagueando, perdido no recear do meu ser, na insanidade que, lentamente, se apoderava de mim, consumindo as minhas nostálgicas memórias e resumindo-as a um mero nada. Caminhei, com um rumo mecânico às quatro paredes que me abrigavam do desconhecido, que me abrigavam do que eu ainda vivia, perdido na entidade esquecida do amor da minha vida.
E deixei-me cair sobre a velha cadeira de madeira, certificando-me que a mesma janela de madeira oca e escura continuava fechada para que reprimisse o “labirinto mental”, como ultimamente me habituara a chamar à situação do mundo análogo que a doença me impunha. A imagem daquela divisão nojentamente familiar rodopiava na minha mente, à medida que as cores se desvaneciam nas ilusões da minha morte parcial. Tentei agarrar-me ao assento, enquanto a minha cabeça latejava e me deixava cair de joelhos, ansiando por algo… alguém… e chorei, perdendo a noção do mundo.
O vulto da minha alma gémea assombrava-me. Os seus longos cabelos loiros continuavam a emanar a mesma fragrância enquanto evocava a altura em que os deixara percorrer os meus dedos pela última vez. Os seus olhos azuis ainda penetravam a minha alma, resumindo-me a lágrimas. Os seus olhos azuis continuavam a traduzir a fera com que lidara outrora, a besta de pessoa presa num corpo demasiado frágil para aguentar. O mesmo corpo que tantas vezes acariciara e possuíra com um cuidado imenso, aparando-lhe todas as quedas quando começara a desmoronar. Lembro-me do cheiro da sua pele, do toque dos seus lábios em ferida, da maneira como tremia descontroladamente, de como gritava nos sonhos, sem saber. Relembro a voz seca e doente, do olhar sombrio e repleto de vida, escondendo a enfermidade dentro de si, que a matava lentamente.
Sei do monstro que fui, dos perigos que a fiz debater, das dores que lhe causei. Lembro-me que fechava os olhos, talvez para chorar, quando me sentava no parapeito da janela, de como se encolhia em si para se proteger do assombro que sou, de como engolia as palavras e nunca, mas nunca dizia algo. E sei que a agarrava com demasiada força, que a beijava com demasiada vontade, que lhe falava demasiado e demasiado alto, que a deixava perdida e fraca, morrendo, demasiadas vezes.
E morrera. Partira.
O seu corpo estendia-se inerte no chão sem qualquer sinais de respiração, o seu corpo nú e parado, com os seus ossos débeis destacando-se na pele opaca e descolorida. Era o seu esqueleto, outrora igual, mas vivo. Sentia os olhos claros, completamente apagados e sem qualquer mudança, os seus lábios roxos, pálidos e fechados, como nunca os vira, o seu cabelo, agora baço, sem a energia que fluía… Parecia morta. Estava morta.
E eu acabara por morrer com ela.
Deitei-me a seu lado, olhei-a em desespero e beijei-lhe a face. Murmurei o seu nome, chamei-a. Agarrei o seu rosto e beijei-a. Chamei-a. Agarrei os seus braços com força, agitei-a em vão. Chamei-a, chamei-a a olhar para ela, chamei-a olhando o céu, chamei-a olhando a terra. Chamei, mil e uma vezes e não voltava! Não voltava para mim…
“Lamento… Lamento…”, sussurrei, enquanto enchia o chão com sangue. “Perdoa-me.”, falei, sujando-lhe o corpo com o meu sangue. “Volta”, gritei, caindo-me sobre ela e fechando os olhos.
Mas, acordei. E o amor da minha vida dormia na minha cama.
E eu chorei, admirando o mesmo sangue que vira no meu labirinto mental, inundando o meu corpo marcado.

Edmundo Brandão

Labirinto Mental


Acendi um cigarro.
Equilibrei o corpo pesado e inerte sobre o parapeito da janela e encostei a cabeça ao caixilho de madeira escura e oca marcada pelo tempo, apreciando o fumo que bafejava sem emitir qualquer som a voar e misturar-se no céu escuro e desaparecer diante de mim.
Fechei os olhos, perdendo-me na vastidão dos meus pensamentos. Separados da racionalidade e da consciência do meu íntimo, traduziam-se em nada e em tudo. Fechei os olhos, contornado tudo aquilo que devia estar a estudar e analisar atentamente para, ao invés, escolher pensar sobre pormenores desinteressantes e sem qualquer traço de utilidade.
Estava uma noite escura. Estava uma noite fria. E nem isso me impedia de ter a janela aberta, como uma porta para o universo paralelo em que me situava mentalmente.
Mas… estava uma noite imensamente fria e estava uma noite ainda mais escura.
Engoli a saliva que tinha em excesso e os meus lábios formaram uma linha reta, mostrando a repulsa que senti ao sabor amargo que a minha língua sentia. Lambi os lábios e apaguei o cigarro que se juntou aos outros demais no cinzeiro velho do quarto sujo.
Suspirei e o silêncio que preenchia as quatro paredes quebrou-se. Arrependi-me instantaneamente de o ter feito e mordi a língua, amaldiçoando-me.
Voltei-me para trás, onde o seu vulto jazia.
A maneira como o seu corpo estava deitado e nu sobre os lençóis de pano branco, soltos na cama, incomodava-me. Incomodava-me a sensação de estar tão embrenhado no desejo de lhe afagar o cabelo louro e brilhante que lhe caia pelo tronco e senti-lo escorregar por entre os dedos. Atordoava-me só de imaginar acariciar-lhe as suas costas magras e curvadas que possuía ou de passar a mão pelo seu rosto pálido e belo, estudando a curva subtil do teu maxilar e a firmeza dos teus lábios ténues entreabertos, como se fosse dizer algo que não queria… Conseguia sentir o odor a perfume francês de onde estava e o seu cabelo emanava o cheiro do meu champô barato.
Os seus olhos azuis homogéneos cravaram-se nos meus enquanto a sua expressão facial se agravou ao ver que eu os fechara por uns segundos. Fechou a boca num sorriso invertido quando os abri, deixando as maçãs do rosto salientes. O seu olhar tinha-se tornado estranhamente descolorido, com um medo estampado, transparecendo uma ignorância propositada e um vazio que tentava esconder o choro. Era um vazio cheio de mágoa e desprezo que afastou toda a tensão do ar sem ninguém se mover ou falar.
Virei o rosto para o céu emoldurado pela janela. Não tinha medo dele, a escuridão não me assustava. Contudo, o silêncio dela perfurava-me a cada centímetro do meu corpo gelado. O seu silêncio amedrontava-me mais do que o vácuo. O seu silêncio feria-me como nada me poderia ferir, deixando-me dormente, trémulo e a ranger os dentes para evitar murmurar o que não devia ser dito.
Pousei os pés no chão com firmeza e as tábuas de madeira rangeram. Percorri a divisão toda com o olhar sem passar sequer pelos contornos do seu corpo. Arrepiei-me por pensar na sua voz misericordiosa e melódica e esfreguei o último cigarro que ainda estava aceso no cinzeiro.
Os seus braços rodearam-me a cintura. Sei que tentava impedir-me de mover mas era tão forte quanto o vento num dia jovem de verão e baixei o queixo para encarar as suas mãos pequenas. Tentou apertar-me e imobilizar-me naquele abraço forçado e senti-a quente a colar-se a mim, encaixando-se de maneira a que não houvesse nada a separar os nossos dois corpos. Estava imensamente cálida e os seus seios pressionavam as minhas costas desnudadas, arrepiando-me e reagindo com um estremecer. A sua cabeça pousou entre as minhas omoplatas como uma pena cai no chão e os cabelos caíram-lhe pela cara, presos entre nós. Respirava devagar e com dificuldade, bafejando um hálito húmido e fresco por entre a boca ligeiramente aberta e pressionada contra mim.
Podia dizer que chorava em silêncio, mas nunca o soube como também nunca descobri quando o fazia à minha frente.
Rodou a cintura devagar e deixou afrouxar os braços, soltando-os de maneira a deslizarem desde o meu peito até às minhas mãos, onde me agarrou pelos dedos, já sem força.
Confrontei-a vagarosamente, não querendo assusta-la com os meus movimentos rápidos e fiquei longos minutos olhando-a nos olhos enquanto ela olhava para os seus pés descalços.
Inclinei-me sobre ela. Julguei-me um monstro por amar uma criatura tão inocente e tão indefesa como ela mas não evitei segurar-lhe gentilmente no queixo durante a troca de olhares que a coagia a ter, puxando a face dela para a minha e roçando os meus lábios nos dela. Beijei-a como se fosse a primeira vez e última vez que o fazia. Beijei-a com cautela para me despedir dela mesmo que não o fosse fazer. Beijei-a, como se fosse a única mulher no mundo e a única que amava. Beijei-a e disse-lhe isto tudo sem que tivesse que usar sons para tal.
E, atordoada, caiu nos meus braços. Permiti que permanecesse ali calada, imóvel, sem expressão para que recuperasse o que quer que tivesse perdido. Deixei que descaísse o seu peso todo sobre o meu corpo para que pudesse voltar a respirar e a manter-se em pé. Mas, mesmo assim, eu beijava-a e tinha-a junto a mim.
Iluminada pela noite parda, continuava com o rosto inexpressivo, com a boca aberta sem respirar e com os olhos apagados de luz. Distante, como sempre assim fora, mas tão perto. Ergui a mão para lhe tocar na face e acordá-la do choque com amabilidade. Percorri os seus cabeços com os dedos e agarrei a sua cintura esbelta.
Fechou os olhos, o pequeno ser, pedindo-me para lhe tocar. Deslizei as mãos pelas suas costas magras, sentido o relevo dos seus ossos pequenos e débeis. Com uma voz desfalecida, rouca e aguda pediu-me que o fizesse. Subentendeu a cura para a dor que lhe dava, o alívio do refúgio que lhe dava do orbe sombrio em que vivia. Escondeu a maneira de como a fazia sentir mais forte do que alguma vez fora, mais feliz do que imaginava poder ser, mais rica do que ter todo o ouro do mundo. Implorou-me que a amasse.
Peguei-lhe pelas costas e rodeou-me as pernas com a cintura, prendendo-me a si. Os seus braços percorreram a minha nuca e prenderam-me o cabelo enquanto roçava o seu nariz no meu com um sorriso encantado. Frágil e subtil, seduzia-me e entregava-se à sua maneira, apertando-me com toda a força possível.
Deitei o seu pequeno corpo na cama, de olhos fixos nos seus.
Aí, nesse momento, a minha realidade voltou a sumir-se.
Fiquei num espaço negro, envolto no mesmo negrume e em ainda maior escuridão. Sem qualquer som que pudesse ouvir, sem gosto ou sem qualquer toque que pudesse sentir, perdi a noção do espaço-tempo, do concreto e do abstrato.
Tinha voltado a perder-me no universo paralelo que conhecia melhor do que devia. Imóvel, fiquei tenso e calado à espera da rotina insana que tomava há já tanto tempo. Esperei que o tempo sem medidas passasse, que o local deslocado se alterasse e aguardei pacificamente que as vozes se calassem ignorando as blasfémias que murmuravam, tentando convencer-me daquilo que já sabia que era irreal.
Olhei para ela.
Tinha-se escondido nos lençóis da cama. Apavorada, olhava para mim, respirando demasiado depressa e erguendo o peito ao mesmo ritmo com uma rapidez que já vira nas mesmas circunstâncias. O seu corpo emitia um brilho de cheiro a jasmim e a noz esmagada que era simplesmente o seu suor. De braços cruzados, as unhas cravavam-se na pele, deixando marcas vermelhas e o seu rosto estava molhado com fios de cabelo colados à face, escondendo os olhos vermelhos de quem tivesse estado a chorar sem parar durante horas a fio.
Questionei-me o tempo que levara a sair do labirinto mental, daquela vez. Baixei as mãos que estavam presas ao cabelo, soltando-o, e ignorei os cortes e marcas recentes nos braços que se misturavam com muitas cicatrizes que já tinham sido esquecidas com o tempo e com os novos episódios de pura loucura.
Ignorei completamente o meu estado, levando-me pelo hábito. Não estava bem, conhecia-me, mas não estava pior que ela que não fazia ideia dos escombros da minha pessoa.
Encostei-me à janela, olhei a noite escura e acendi um cigarro.

Edmundo Brandão

.


Enquanto as almas vagueiam
Sobre o mar de espíritos,
Brilha o Sol que não existe
Perante o fogo que não resiste.
À força de um desejo
De um corpo e de uma mente
Que não só os vê
Como também os sente.
Ouve o seduzir dos movimentos,
Suaves e lentos.
Escuta o suspiro que não responde,
O querer que não esconde
Perante apenas duas mentes
Livres e independentes,
Que em si são só uma
Mas que nos espelhos têm duas frentes.
Vagueiam no olhar,
Não no marinho ou no celeste
Não no castanho carvalho,
Mas no brilho do orvalho
Que cai deles sobre lágrimas,
Gélidas e sentidas,
Mutilando o ser invisível
Mas continuando as feridas.
Mas as subidas e as descidas,
De vidas mal vividas
Pouco se aguentam
No pique do purgatório.
Não morre nem vive,
Não respira nem suspira!
Danados sejam
Os que omitiram e falsearam
Por quão tantos pecados
Que só eles presentearam!
Expulsos e aniquilados,
Que parem de vaguear
Almas tais não sabem amar,
Não merecem respirar.
E que o seu cadáver caia no chão,
Como morto mal morto
Como o osso está
Para a carne de um outro
O suspiro vai deixando
e as suas mãos se vão separando
Vai e não volta.
Uma corda que se solta.

O Monólogo


X: Eu existo.
Y: Tu achas que existes.
Z: Se caíres, não passas do chão.
W: Se caíres, estarei aqui para te levantar.
X: Estarás?
Y: Sim.
W: Sim.
X: Talvez.
Y: Talvez.
Z: Se te levantares, também não voarás.
X: Mas existo...
Z: Porque não?
W: Não te deixarei.
Y: Eu sei.
W: Nunca.
Z: Abre os olhos.
X: Não se se quero.
Y: Nunca o deixarás...
Z: Enquanto existir, não.
X: Se não existir, eu não existo.
Z: Se não existires, não existe.
W: Blasfémia!
Y: Blasfémia!
X: Talvez.
Z: O que terá que ser, será.
Y: O que não tiver que ser, talvez será.
W: Eu sou o que tem que ser.
X: Se eu quiser.
Z: Correto.
W: Independentemente. Não te deixarei.
Y: Correto.
X: Não sei o que quero...
W: A mim.
Y: A ela.
Z: A ela?
Y: Ela nunca o deixará. Ela nunca te deixará.
X: Não sei o que quero... O que quero?
Z: Quando sonhas, não inventas. Reproduzes uma série de memórias que o teu subconsciente acumulou. Essas memórias, por serem tão... inconscientes, são empilhadas de uma maneira descomunal, sem qualquer sentido. O sonho não é algo irreal ou algo a que podamos chamar "insano". É o irreal dentro da realidade e o insano dentro da sanidade. O sonho é apenas estranho.
Y: Mas/E a irrealidade de um sonho está nas possibilidades de o tornar conscientemente real, de acontecer quando estamos de olhos abertos.
Z: Ou então, sonhamos de olhos abertos e não sonhamos nada de que alguém comum chame "estranho" pelo que o sonho se torna o nosso estado "acordado".
X: Estás de olhos abertos?
W: Estou. E tu?
Z: É impossível não estar.
X: Também.
W: Sentes-te a sonhar?
X: Não. E tu?
W: Sinceramente? Sim. Amo-te completamente.
X: Também eu...
Z: Não estou a saber...
Y: Ou não sabes?
Z: Não sei.
Y: Eu sabia.
Z: Sabias?
Y: Eu sei do que sei, mas não sei do que não sei.
Z: Não pareces tu a falar.
X: Quem sou eu?
Y: Não é teu dizeres isso.
X: Porque é que estou aqui?
W: Estás comigo.
Z: Só sabes daquilo que sabes quanto te cruzas com a pergunta que corresponde a essa resposta, quando te questionam sobre isso.
X: E sabes a resposta.
W: E sabes a resposta?
Y: A quê?
X: À minha pergunta.
Z: Porque porque. Está além de mim.
Y: Porque tem que ser assim.
X: Assim, como?
Y: Não sei. Está além de mim...?
X: E de ti?
Z: Também.
X: E de ti?
W: Não sei. (Im)possivelmente, está além de mim.
Z: Também está além de mim.
X: E se eu for um acordado a dormir?
Z: Se me costumas amar...
Y: Mas agora estás comigo?
W: E eu?
X: Eu... tenho frio. Tenho fome. Tenho carência humana e carência de forças. Tenho sede porque gastei todas as minhas partículas de água que restavam no meu corpo a chorar o invisível, o irracional. Falo agora num tom ínfimo porque prefiro gastar a voz a comentar a minha vida em lamechisses no vazio do que usar a cabeça no seu todo...
Z: Estou a teu lado.
W: E eu?
X: Não consigo comer porque não tenho fome. Não consigo beber porque não tenho sede. Não consigo chorar porque não tenho vontade para nenhum nem para ninguém. Não consigo sequer abrir os olhos e estou com imenso sono! Sinto-me cansado e ainda agora acordei. Sinto-me perdido nas contradições que a minha mente faz, quieta.
W: E eu?!
X: Não sei o que quero.
W: E eu...?
X: Acho que acordei.
Z: O que te faz dizer isso?
X: Estamos só nós.
Z: Estamos?
X: Que eu veja, sim.
Z: E o que vês?
X: O que sinto?
Z: O que quiseres.
X: O que quero?
Z: O que sentes.
X: Tudo.
Z: Ou nada?
X: Quero tudo.
Z: E não tens nada.
X: Não.
Z: Não?
X: Sim.
Z: O que é nada para ti?
X: Tudo.
Z: O que é o tudo?
X: Obviamente, nada.
Z: O tudo é tudo aquilo que te falta ou o nada é aquilo que tens?
X: O tudo é tudo aquilo que me falta e nada é aquilo que tenho.
Z: O que tens é o quê?
X: Tudo.
Z: Ou seja?
X: O que me falta é um nada.
Z: O que tens não te basta?
X: Não.
Z: Porque não?
X: Porque não tenho o que quero. Não tenho vontade para nada, já disse! Não tenho motivos para nada, também! Não tenho aqueles sentimentos de que todos falam e dizem ser tão... qual é a palavra? Bons. Não tenho nada disso, mas sei que tenho aqueles que todos já viveram ou que já se aproximaram de viver. Sei que tenho medo, vergonha, calma e amargura em mim. Sinto aquela raiva! Aquela teimosia a brotar de mim como se as expirasse e sinto-me a transpirar nostalgia...
Z: Estou... à nora.
X: O que eu quero dizer é que estou completamente cansado desta monotonia de emoções. Quero fugir à palidez da melancolia e ao comum estranho da loucura e quero, duma vez por todas, dizer que sou o sortudo que consegue encontrar as razões para ter um simples sorriso esboçado na cara. Quero orgulhar-me de saber quem sou, conhecer todos os meus gostos e todos os meus desgostos bizarros de uma pessoa comum. Quero poder dizer que sou um acordado para a vida e dizer que sou uma pessoa minimamente satisfeita com isso, quando, na verdade, agradeço todos os dias a Deus aquilo que tenho e chego a chorar de alegria... e quero... sentir pena. Quero sentir pena pelos que passam por mim e que estão despertos para o mundo mas são seres miseráveis. E sentir remorsos por não querer ter nada a ver com as entidades sonâmbulas que vivem na ilusão que eu, supostamente, já vivi. Quero ser assim: inocente, acordado... feliz.
Z: O que é a felicidade para ti?
X: Acabei de o dizer.
Z: Repete-o, então.
X: Não quero! Recuso-me!
Z: Porquê?
X: Não acho que seja plausível repetir algo que ninguém vai ouvir.
Z: Peço-te...
X: A felicidade é triste. É triste no ponto em que estou supostamente alegre mas sinto-me incrivelmente vazio e infeliz.
Z: Esse é o teu conceito de felicidade?
X: Não... Felicidade não é isto.
Y: O que é a felicidade para ti?
Z: Vai-te embora.
X: Não sei. Não vás.
Z: Eu consigo.
Y: Admite. O que é a felicidade para ti?
Z: Não interrompas, eu consigo.
X: Não sei. A felicidade, para mim, é uma incógnita. Sei o que é, mas, ao mesmo tempo, não sei, porque nunca tive o prazer de o sentir por entre os meus dedos. Felicidade é um sonho. Aquilo que existe, mas que não vivemos apesar de o presentearmos.
Y: Então, como te sentes?
Z: Como te sentes?
X: Sinto-me infeliz. Já o disse: miserável, nostálgico, quase insensível e dormente devido à dor, à azia que sinto e ao desgosto. Muitos outros adjetivos deprimentes podem descrever o que sinto mas não estou com cabeça para estar a enumerá-los como se tivesse prazer na minha dor.
Z: Mas?
Y: E?
X: E, dentro desta infelicidade, contudo, consigo definir a minha vida como uma linha com um grande nó. Neste momento, estou parado, sem saber por onde seguir, o que fazer e com desgosto preso na garganta. Neste exato momento, estou perdido e sozinho. Mas também sei que podia estar acompanhado, de uma maneira inconsciente e por mim mesmo. E essa é a minha única ponta de satisfação neste nó da minha vida.
Z: Estás a dizer que sabes disto tudo?
W: E eu?
X: Sim. Sei disto tudo, ainda não me tornei ignorante ao ponto de ignorar a minha própria consciência e, por vezes, até penso que o faço de propósito, porque é isto que mais se assemelha à felicidade. Tu és o que mais se assemelha à felicidade para mim, em mim.
Z: Tu?
W: Eu?
Y: Ela.
X: Ela.
W: Eu.
Z: Ela?
X: Não sabes. Devias saber, mas não sabes. Desconheces essa parte de mim, não é?
Z: Parece que sim.
X: Sei que te desiludi. Sei que me desiludi. Mas explica-me. O que é a vida?
Z: Eu considero a vida uma linha. Mas não só uma linha que se pode dividir… não… uma linha que se divide em linhas paralelas. Essas linhas paralelas criaram-se devido a escolhas que o individuo que possui essa vida tomou. Essas escolhas dependeram de decisões que foram feitas a partir de deliberações ou ações não pensadas que, no fundo, se basearam sempre em sentimentos e emoções.
X: A vida é só isso?
Z: É.
X: A vida é só um conjunto de escolhas?
Z: A vida é um conjunto de emoções e sentimentos que causaram escolhas. A tua vida é o que tu sentes e o que influencia tudo o que fazes e, novamente, forma a linha da vida.
X: Não me agrada.
Z: O que te agrada?
X: Ela.
Z: Continuo sem saber quem ela é.
Y: Eu sei.
Z: Ou seja, não é boa coisa.
Y: Para ele, é.
X: Para mim, é.
Z: Mas para mim, não.
X: O que é bom para ti?
Z: Eu sou o melhor para ti.
X: O que és tu?
Z: Não preciso de o dizer.
Y: Diz.
Z: Diz tu.
Y: O quê?
Z: Quem és tu.
Y: Quem sou eu?
X: Quem és tu?
Z: Eu?
Y: Eu?
X: Quem são vocês?
Z: Tu sabes quem sou.
Y: Tu não sabes quem sou.
X: Continua…
Z: Não preciso de te dizer.
X: Não és tu.
Y: Eu?
X: Quem és tu?
Y: Tu não sabes quem eu sou.
X: Continua.
Y: E é isso que te faz querer ficar comigo.
X: Mas?
Y: Mas também sabes quem sou.
X: Continua.
Y: E isso também te faz querer ficar comigo.
W: Comigo.
Y: Connosco.
Z: Connosco?
W: Connosco.
Y: Comigo.
X: Parem!
Z: Fala comigo. Eu posso ajudar-te.
X: Não me trazes felicidade, nem um bocadinho de prazer.
Z: Não. Eu trago-te o que é abstrato e concreto. Trago-te o que te podes realmente fiar, sem teres medo de te enganar a ti próprio. Trago-te aquilo que procuras, quando aceitares que é o melhor para ti. Não te prometo felicidade, não de prometo prazer nem mesmo algo apenas um pouco satisfatório. Mas acredita, tudo o que eu te trago é real. Eu trago-te a realidade.
X: Não percebo…
Z: Ouve, eu trago-te a realidade. A realidade é repleta de aspetos positivos e aspetos negativos. E, ao contrário do que os outros te podem prometer…
Y: Sim?
Z: Ao contrário do que os outros te podem prometer, a felicidade que eventualmente vais sentir é real e não te vai fugir das mãos se acordares, porque, aqui, comigo, já estás acordado.
X: Entendo…
Z: Por isso, diz-me. Diz-nos. Vais sucumbir?
Y: Isso. Diz-nos.
W: Diz-me.
X: Eu…
Z: Estou à espera.
W: Eu posso esperar o tempo que quiseres.
Y: Mas eu não! Diz!
X: Eu…
W: Relaxa, não te vá sair o que não queres.
X: Eu não sei!
Z: Como assim, não sabes?
X: Fazes muitas perguntas!
Z: Faço as que têm que ser feitas.
Y: Isso. Agora, responde!
X: Eu não sei!
Z: Sabes, mas não o queres dizer com medo da reação de um de nós.
W: Tens que admitir que tem razão.
Y: Posso ser imprevisível… não… doido, mas sei disso.
X: Não! Eu não sei.
Z: O que sabes, então?
Y: Nada.
W: O suficiente.
Z: Tudo.
X: Nada de relevante e tudo o que é suficiente.
Z: Não achas que decidir o caminho que vai definir a tua vida toda é algo relevante?
X: É. E eu não duvido disso.
Y: Sim…
Z: O que estás a querer dizer com isso?
Y: É um bocado óbvio.
Z: Sim…?
Y: És um bocado ignorante.
W: Ele quer dizer que…
Y: Ele quer dizer que…
Z: Que?
W: Que apesar de saber que a sua vida é algo relevante…
Y: Que apesar de saber que a sua vida é algo relevante…
W: É isso que o faz a si próprio.
Y: É isso que o faz a si próprio.
Z: Porquê? É isto?
X: Continua.
W: Porque bem disse com sabedoria que não sabe nada de relevante…
Y: Porque bem disse com sabedoria que não sabe nada de relevante…
W: E é esse o motivo de não saber o que vai fazer quanto à sua vida…
Y: E é esse o motivo de não saber o que vai fazer quanto à sua vida.
W: … as suas escolhas, a sua companhia, o seu futuro.
X: Mas não os sentimentos.
Z: Porque, afinal de contas, não consideras os teus sentimentos algo relevante…
Y: Agora, diz-lhe. Diz-lhe porquê. Quero ver a sua reação.
X: Devo?
W: Diz-lhe. É inteligente, irá perceber.
X: Porque a minha vida não importa…
Z: Não importa?
Y: Diz-lhe!
X: Não, não importa.
W: Tens que ser mais específico, não pode adivinhar se nem uma expressão tens na cara.
X: Não importa porque tenho o que tenho. Tenho o que tenho. Sim, tenho o que tenho.
Z: O que é que tu tens?
X: Não sei ao certo porque é relevante. Só sei que existo.
Z: Se caíres…
Y: Cala-te! Não temos tempo para isto!
X: E ao existir, existem todos vocês. A minha realidade.
Z: Certo.
X: A minha irrealidade.
Y: Correto.
X: E o que eu quero.
Y: Como por exemplo?
X:  É indefinido.
Y: Vá la…
X:
Eu não tenho medo.
Não tenho medo do que me possa acontecer. Não tenho medo do caminho que tenho que seguir. Não tenho muito menos medo de me perder na imensidão dos meus pensamentos.
Porque o tempo de uma vida é imenso tempo. Tempo que pode passar-me diante dos meus olhos sem que eu me aperceba da velocidade a que o tempo passa ou tempo que dê voltas e mais voltas no espaço-tempo incerto. De qualquer das maneiras, é o tempo da minha vida.
Z: Não mudes de assunto.
Y: O que é que queres?!
X: Quero ter que esperar sentado durante o tempo que for preciso, sentado nos degraus da entrada de casa, da nossa humilde casa, para que ela venha, uma vez que perdi as chaves para poder entrar.
Quero fingir que perdi as chaves de casa para me obrigar a ficar à sua espera e ter aquela sensação inconfundível de alívio e entusiasmo por ver a sua silhueta inconfundível.
Dar passeios longos com ela, de braço dado, enquanto ficamos perdidos no silêncio triunfante das árvores a dançar com o vento e da água a escorrer no horizonte.
Correr para debaixo de um café aleatório quando começa a chover torrencialmente sem qualquer aviso. Reparar que ela não correu comigo, sentir-me desnorteado e desesperado durante alguns momentos e voltar para trás. Andar com ela à chuva durante tempo indefinido.
Levá-la ao cinema numa sexta à noite. Levá-la a jantar no seu restaurante preferido, à parte da comida intragável. Ser forçado a dar-lhe o meu casaco porque ficou demasiado frio para ela e segurar-lhe nos sapatos enquanto anda descalça, com os pés doridos. Levá-la ao teatro. Levá-la de volta a casa.
Ficar tardes ou noites em casa com ela, presos no sofá, com canecas de chá preto ao lado enquanto nos deixamos levar por filmes, por músicas, por poemas ou por livros.
Ver filmes terríveis. Ouvir músicas intoleráveis. Ler poemas incrivelmente insanos. Dançar danças ridículas.
Ver filmes épicos. Ouvir músicas utópicas que fazem chorar os trovadores mais iludidos. Ler poemas que fazem os poetas ferverem de inveja. Dançar com ela, da maneira que nos ligamos mais intimamente, que nos sentimos um só.
Quero vê-la contar-me a história da sua vida. Deixar que flua com uma conversa que não pareça ter fim para, em segredo, estudar as suas reações, as suas expressões, os seus traços.
E reparar no rosto marcado por tanto se rir. Reparar em como está elegantemente bonita e matura. Como as suas costas arqueiam quando está em pé muito tempo, como brinca com os anéis nos seus dedos quando está aborrecida. Ver os seus olhos perder o azul que têm a cada dia que passa para se tornarem num cinzento cheio de cor.
Dizer-lhe o quando gosto das curvinhas que o seu cabeço faz. Invejar o brilho no seu olhar quando olha para mim como mais ninguém olha. Derreter-me completamente com o sorriso que os seus lábios emolduram. Admitir o quanto bonita é. Desabafar-lhe como as curvas do seu corpo me deixam louco de desejo. O quão adoro o jeito das suas mãos tocar-me, o quão adoro como o seu cabelo lhe cai pelas costas, o quão adoro tudo nela.
Abrir os braços e senti-la aninhar-se no meu peito sem que eu precise de murmurar uma palavra. Apertar-lhe os ombros enquanto pousa o queixo nos meus e soprar-lhe os cabelos.
Beijá-la de repente. Beijar-lhe as faces e a testa. Prendê-la junto a mim e sentir o seu cheiro encher-me de vontade. Acariciar o seu queixo enquanto nos perdemos no olhar.
Deixar que adormeça no meu colo. Apreciá-la quando dorme.
E gozar com ela quando ronca enquanto se ri. Ficar absurdamente impaciente pelo tempo que demorar a arranjar-se. Vê-la cair no chão a rir quando não se consegue conter. Ouvir as barbaridades que diz quando nem se dá ao trabalho de pensar no assunto primeiro. Segurar nela quando tropeça nos sapatos com salto alto. Vê-la corar pelas suas atitudes. Imitá-la.
Também… Discutir com ela e perder a cabeça. Fazê-la chorar mas sentir-me prestes a desaparecer e morrer quando chora. Sacudir-lhe os cabelos da cara e chorar com ela.
Sacudir-lhe os ombros quando ela perde a cabeça e gritar-lhe para voltar para os meus braços.
Deixar que o silêncio nos envolva.
Amá-la mais nesses momentos do que em todos os outros.
Amá-la em todos os momentos. Em toda minha vida. De uma maneira… incondicional.
Z: Mesmo que ela seja um mero nada?
W: Não vale a pena.
Z: Mesmo que ela não exista em lado algum além do teu inconsciente?
Y: Ignorante.
Z: Porquê?
Y: Porque já perdeste a conversa há muito tempo.
X: Que conversa?!
Y: Esta.
Z: Esta.
X: Isto é sobre mim. Isto não é nem a realidade, nem a irrealidade, nem sequer o que quero. Isto é a reflexão do que está para além de mim. Sou ignorante ao ponto de me sucumbir. Sim, sucumbi. Sucumbi à minha consciência e estou perdido no meio de juízos de valor sem quaisquer factos incluídos. Sucumbi a tudo e não resta nada de mim…
Mas o que me consome mais é que depois disto, há o início, não o fim. Depois disto, há o princípio. Porque eu existo. Eu existo, sim! Mas vocês não. E isto… isto não é uma conversa. Isto é o MEU monólogo.