Acendi um cigarro.
Equilibrei o corpo pesado e inerte sobre o parapeito da janela e encostei a cabeça ao caixilho de madeira escura e oca marcada pelo tempo, apreciando o fumo que bafejava sem emitir qualquer som a voar e misturar-se no céu escuro e desaparecer diante de mim.
Fechei os olhos, perdendo-me na vastidão dos meus pensamentos. Separados da racionalidade e da consciência do meu íntimo, traduziam-se em nada e em tudo. Fechei os olhos, contornado tudo aquilo que devia estar a estudar e analisar atentamente para, ao invés, escolher pensar sobre pormenores desinteressantes e sem qualquer traço de utilidade.
Estava uma noite escura. Estava uma noite fria. E nem isso me impedia de ter a janela aberta, como uma porta para o universo paralelo em que me situava mentalmente.
Mas… estava uma noite imensamente fria e estava uma noite ainda mais escura.
Engoli a saliva que tinha em excesso e os meus lábios formaram uma linha reta, mostrando a repulsa que senti ao sabor amargo que a minha língua sentia. Lambi os lábios e apaguei o cigarro que se juntou aos outros demais no cinzeiro velho do quarto sujo.
Suspirei e o silêncio que preenchia as quatro paredes quebrou-se. Arrependi-me instantaneamente de o ter feito e mordi a língua, amaldiçoando-me.
Voltei-me para trás, onde o seu vulto jazia.
A maneira como o seu corpo estava deitado e nu sobre os lençóis de pano branco, soltos na cama, incomodava-me. Incomodava-me a sensação de estar tão embrenhado no desejo de lhe afagar o cabelo louro e brilhante que lhe caia pelo tronco e senti-lo escorregar por entre os dedos. Atordoava-me só de imaginar acariciar-lhe as suas costas magras e curvadas que possuía ou de passar a mão pelo seu rosto pálido e belo, estudando a curva subtil do teu maxilar e a firmeza dos teus lábios ténues entreabertos, como se fosse dizer algo que não queria… Conseguia sentir o odor a perfume francês de onde estava e o seu cabelo emanava o cheiro do meu champô barato.
Os seus olhos azuis homogéneos cravaram-se nos meus enquanto a sua expressão facial se agravou ao ver que eu os fechara por uns segundos. Fechou a boca num sorriso invertido quando os abri, deixando as maçãs do rosto salientes. O seu olhar tinha-se tornado estranhamente descolorido, com um medo estampado, transparecendo uma ignorância propositada e um vazio que tentava esconder o choro. Era um vazio cheio de mágoa e desprezo que afastou toda a tensão do ar sem ninguém se mover ou falar.
Virei o rosto para o céu emoldurado pela janela. Não tinha medo dele, a escuridão não me assustava. Contudo, o silêncio dela perfurava-me a cada centímetro do meu corpo gelado. O seu silêncio amedrontava-me mais do que o vácuo. O seu silêncio feria-me como nada me poderia ferir, deixando-me dormente, trémulo e a ranger os dentes para evitar murmurar o que não devia ser dito.
Pousei os pés no chão com firmeza e as tábuas de madeira rangeram. Percorri a divisão toda com o olhar sem passar sequer pelos contornos do seu corpo. Arrepiei-me por pensar na sua voz misericordiosa e melódica e esfreguei o último cigarro que ainda estava aceso no cinzeiro.
Os seus braços rodearam-me a cintura. Sei que tentava impedir-me de mover mas era tão forte quanto o vento num dia jovem de verão e baixei o queixo para encarar as suas mãos pequenas. Tentou apertar-me e imobilizar-me naquele abraço forçado e senti-a quente a colar-se a mim, encaixando-se de maneira a que não houvesse nada a separar os nossos dois corpos. Estava imensamente cálida e os seus seios pressionavam as minhas costas desnudadas, arrepiando-me e reagindo com um estremecer. A sua cabeça pousou entre as minhas omoplatas como uma pena cai no chão e os cabelos caíram-lhe pela cara, presos entre nós. Respirava devagar e com dificuldade, bafejando um hálito húmido e fresco por entre a boca ligeiramente aberta e pressionada contra mim.
Podia dizer que chorava em silêncio, mas nunca o soube como também nunca descobri quando o fazia à minha frente.
Rodou a cintura devagar e deixou afrouxar os braços, soltando-os de maneira a deslizarem desde o meu peito até às minhas mãos, onde me agarrou pelos dedos, já sem força.
Confrontei-a vagarosamente, não querendo assusta-la com os meus movimentos rápidos e fiquei longos minutos olhando-a nos olhos enquanto ela olhava para os seus pés descalços.
Inclinei-me sobre ela. Julguei-me um monstro por amar uma criatura tão inocente e tão indefesa como ela mas não evitei segurar-lhe gentilmente no queixo durante a troca de olhares que a coagia a ter, puxando a face dela para a minha e roçando os meus lábios nos dela. Beijei-a como se fosse a primeira vez e última vez que o fazia. Beijei-a com cautela para me despedir dela mesmo que não o fosse fazer. Beijei-a, como se fosse a única mulher no mundo e a única que amava. Beijei-a e disse-lhe isto tudo sem que tivesse que usar sons para tal.
E, atordoada, caiu nos meus braços. Permiti que permanecesse ali calada, imóvel, sem expressão para que recuperasse o que quer que tivesse perdido. Deixei que descaísse o seu peso todo sobre o meu corpo para que pudesse voltar a respirar e a manter-se em pé. Mas, mesmo assim, eu beijava-a e tinha-a junto a mim.
Iluminada pela noite parda, continuava com o rosto inexpressivo, com a boca aberta sem respirar e com os olhos apagados de luz. Distante, como sempre assim fora, mas tão perto. Ergui a mão para lhe tocar na face e acordá-la do choque com amabilidade. Percorri os seus cabeços com os dedos e agarrei a sua cintura esbelta.
Fechou os olhos, o pequeno ser, pedindo-me para lhe tocar. Deslizei as mãos pelas suas costas magras, sentido o relevo dos seus ossos pequenos e débeis. Com uma voz desfalecida, rouca e aguda pediu-me que o fizesse. Subentendeu a cura para a dor que lhe dava, o alívio do refúgio que lhe dava do orbe sombrio em que vivia. Escondeu a maneira de como a fazia sentir mais forte do que alguma vez fora, mais feliz do que imaginava poder ser, mais rica do que ter todo o ouro do mundo. Implorou-me que a amasse.
Peguei-lhe pelas costas e rodeou-me as pernas com a cintura, prendendo-me a si. Os seus braços percorreram a minha nuca e prenderam-me o cabelo enquanto roçava o seu nariz no meu com um sorriso encantado. Frágil e subtil, seduzia-me e entregava-se à sua maneira, apertando-me com toda a força possível.
Deitei o seu pequeno corpo na cama, de olhos fixos nos seus.
Aí, nesse momento, a minha realidade voltou a sumir-se.
Fiquei num espaço negro, envolto no mesmo negrume e em ainda maior escuridão. Sem qualquer som que pudesse ouvir, sem gosto ou sem qualquer toque que pudesse sentir, perdi a noção do espaço-tempo, do concreto e do abstrato.
Tinha voltado a perder-me no universo paralelo que conhecia melhor do que devia. Imóvel, fiquei tenso e calado à espera da rotina insana que tomava há já tanto tempo. Esperei que o tempo sem medidas passasse, que o local deslocado se alterasse e aguardei pacificamente que as vozes se calassem ignorando as blasfémias que murmuravam, tentando convencer-me daquilo que já sabia que era irreal.
Olhei para ela.
Tinha-se escondido nos lençóis da cama. Apavorada, olhava para mim, respirando demasiado depressa e erguendo o peito ao mesmo ritmo com uma rapidez que já vira nas mesmas circunstâncias. O seu corpo emitia um brilho de cheiro a jasmim e a noz esmagada que era simplesmente o seu suor. De braços cruzados, as unhas cravavam-se na pele, deixando marcas vermelhas e o seu rosto estava molhado com fios de cabelo colados à face, escondendo os olhos vermelhos de quem tivesse estado a chorar sem parar durante horas a fio.
Questionei-me o tempo que levara a sair do labirinto mental, daquela vez. Baixei as mãos que estavam presas ao cabelo, soltando-o, e ignorei os cortes e marcas recentes nos braços que se misturavam com muitas cicatrizes que já tinham sido esquecidas com o tempo e com os novos episódios de pura loucura.
Ignorei completamente o meu estado, levando-me pelo hábito. Não estava bem, conhecia-me, mas não estava pior que ela que não fazia ideia dos escombros da minha pessoa.
Encostei-me à janela, olhei a noite escura e acendi um cigarro.
Equilibrei o corpo pesado e inerte sobre o parapeito da janela e encostei a cabeça ao caixilho de madeira escura e oca marcada pelo tempo, apreciando o fumo que bafejava sem emitir qualquer som a voar e misturar-se no céu escuro e desaparecer diante de mim.
Fechei os olhos, perdendo-me na vastidão dos meus pensamentos. Separados da racionalidade e da consciência do meu íntimo, traduziam-se em nada e em tudo. Fechei os olhos, contornado tudo aquilo que devia estar a estudar e analisar atentamente para, ao invés, escolher pensar sobre pormenores desinteressantes e sem qualquer traço de utilidade.
Estava uma noite escura. Estava uma noite fria. E nem isso me impedia de ter a janela aberta, como uma porta para o universo paralelo em que me situava mentalmente.
Mas… estava uma noite imensamente fria e estava uma noite ainda mais escura.
Engoli a saliva que tinha em excesso e os meus lábios formaram uma linha reta, mostrando a repulsa que senti ao sabor amargo que a minha língua sentia. Lambi os lábios e apaguei o cigarro que se juntou aos outros demais no cinzeiro velho do quarto sujo.
Suspirei e o silêncio que preenchia as quatro paredes quebrou-se. Arrependi-me instantaneamente de o ter feito e mordi a língua, amaldiçoando-me.
Voltei-me para trás, onde o seu vulto jazia.
A maneira como o seu corpo estava deitado e nu sobre os lençóis de pano branco, soltos na cama, incomodava-me. Incomodava-me a sensação de estar tão embrenhado no desejo de lhe afagar o cabelo louro e brilhante que lhe caia pelo tronco e senti-lo escorregar por entre os dedos. Atordoava-me só de imaginar acariciar-lhe as suas costas magras e curvadas que possuía ou de passar a mão pelo seu rosto pálido e belo, estudando a curva subtil do teu maxilar e a firmeza dos teus lábios ténues entreabertos, como se fosse dizer algo que não queria… Conseguia sentir o odor a perfume francês de onde estava e o seu cabelo emanava o cheiro do meu champô barato.
Os seus olhos azuis homogéneos cravaram-se nos meus enquanto a sua expressão facial se agravou ao ver que eu os fechara por uns segundos. Fechou a boca num sorriso invertido quando os abri, deixando as maçãs do rosto salientes. O seu olhar tinha-se tornado estranhamente descolorido, com um medo estampado, transparecendo uma ignorância propositada e um vazio que tentava esconder o choro. Era um vazio cheio de mágoa e desprezo que afastou toda a tensão do ar sem ninguém se mover ou falar.
Virei o rosto para o céu emoldurado pela janela. Não tinha medo dele, a escuridão não me assustava. Contudo, o silêncio dela perfurava-me a cada centímetro do meu corpo gelado. O seu silêncio amedrontava-me mais do que o vácuo. O seu silêncio feria-me como nada me poderia ferir, deixando-me dormente, trémulo e a ranger os dentes para evitar murmurar o que não devia ser dito.
Pousei os pés no chão com firmeza e as tábuas de madeira rangeram. Percorri a divisão toda com o olhar sem passar sequer pelos contornos do seu corpo. Arrepiei-me por pensar na sua voz misericordiosa e melódica e esfreguei o último cigarro que ainda estava aceso no cinzeiro.
Os seus braços rodearam-me a cintura. Sei que tentava impedir-me de mover mas era tão forte quanto o vento num dia jovem de verão e baixei o queixo para encarar as suas mãos pequenas. Tentou apertar-me e imobilizar-me naquele abraço forçado e senti-a quente a colar-se a mim, encaixando-se de maneira a que não houvesse nada a separar os nossos dois corpos. Estava imensamente cálida e os seus seios pressionavam as minhas costas desnudadas, arrepiando-me e reagindo com um estremecer. A sua cabeça pousou entre as minhas omoplatas como uma pena cai no chão e os cabelos caíram-lhe pela cara, presos entre nós. Respirava devagar e com dificuldade, bafejando um hálito húmido e fresco por entre a boca ligeiramente aberta e pressionada contra mim.
Podia dizer que chorava em silêncio, mas nunca o soube como também nunca descobri quando o fazia à minha frente.
Rodou a cintura devagar e deixou afrouxar os braços, soltando-os de maneira a deslizarem desde o meu peito até às minhas mãos, onde me agarrou pelos dedos, já sem força.
Confrontei-a vagarosamente, não querendo assusta-la com os meus movimentos rápidos e fiquei longos minutos olhando-a nos olhos enquanto ela olhava para os seus pés descalços.
Inclinei-me sobre ela. Julguei-me um monstro por amar uma criatura tão inocente e tão indefesa como ela mas não evitei segurar-lhe gentilmente no queixo durante a troca de olhares que a coagia a ter, puxando a face dela para a minha e roçando os meus lábios nos dela. Beijei-a como se fosse a primeira vez e última vez que o fazia. Beijei-a com cautela para me despedir dela mesmo que não o fosse fazer. Beijei-a, como se fosse a única mulher no mundo e a única que amava. Beijei-a e disse-lhe isto tudo sem que tivesse que usar sons para tal.
E, atordoada, caiu nos meus braços. Permiti que permanecesse ali calada, imóvel, sem expressão para que recuperasse o que quer que tivesse perdido. Deixei que descaísse o seu peso todo sobre o meu corpo para que pudesse voltar a respirar e a manter-se em pé. Mas, mesmo assim, eu beijava-a e tinha-a junto a mim.
Iluminada pela noite parda, continuava com o rosto inexpressivo, com a boca aberta sem respirar e com os olhos apagados de luz. Distante, como sempre assim fora, mas tão perto. Ergui a mão para lhe tocar na face e acordá-la do choque com amabilidade. Percorri os seus cabeços com os dedos e agarrei a sua cintura esbelta.
Fechou os olhos, o pequeno ser, pedindo-me para lhe tocar. Deslizei as mãos pelas suas costas magras, sentido o relevo dos seus ossos pequenos e débeis. Com uma voz desfalecida, rouca e aguda pediu-me que o fizesse. Subentendeu a cura para a dor que lhe dava, o alívio do refúgio que lhe dava do orbe sombrio em que vivia. Escondeu a maneira de como a fazia sentir mais forte do que alguma vez fora, mais feliz do que imaginava poder ser, mais rica do que ter todo o ouro do mundo. Implorou-me que a amasse.
Peguei-lhe pelas costas e rodeou-me as pernas com a cintura, prendendo-me a si. Os seus braços percorreram a minha nuca e prenderam-me o cabelo enquanto roçava o seu nariz no meu com um sorriso encantado. Frágil e subtil, seduzia-me e entregava-se à sua maneira, apertando-me com toda a força possível.
Deitei o seu pequeno corpo na cama, de olhos fixos nos seus.
Aí, nesse momento, a minha realidade voltou a sumir-se.
Fiquei num espaço negro, envolto no mesmo negrume e em ainda maior escuridão. Sem qualquer som que pudesse ouvir, sem gosto ou sem qualquer toque que pudesse sentir, perdi a noção do espaço-tempo, do concreto e do abstrato.
Tinha voltado a perder-me no universo paralelo que conhecia melhor do que devia. Imóvel, fiquei tenso e calado à espera da rotina insana que tomava há já tanto tempo. Esperei que o tempo sem medidas passasse, que o local deslocado se alterasse e aguardei pacificamente que as vozes se calassem ignorando as blasfémias que murmuravam, tentando convencer-me daquilo que já sabia que era irreal.
Olhei para ela.
Tinha-se escondido nos lençóis da cama. Apavorada, olhava para mim, respirando demasiado depressa e erguendo o peito ao mesmo ritmo com uma rapidez que já vira nas mesmas circunstâncias. O seu corpo emitia um brilho de cheiro a jasmim e a noz esmagada que era simplesmente o seu suor. De braços cruzados, as unhas cravavam-se na pele, deixando marcas vermelhas e o seu rosto estava molhado com fios de cabelo colados à face, escondendo os olhos vermelhos de quem tivesse estado a chorar sem parar durante horas a fio.
Questionei-me o tempo que levara a sair do labirinto mental, daquela vez. Baixei as mãos que estavam presas ao cabelo, soltando-o, e ignorei os cortes e marcas recentes nos braços que se misturavam com muitas cicatrizes que já tinham sido esquecidas com o tempo e com os novos episódios de pura loucura.
Ignorei completamente o meu estado, levando-me pelo hábito. Não estava bem, conhecia-me, mas não estava pior que ela que não fazia ideia dos escombros da minha pessoa.
Encostei-me à janela, olhei a noite escura e acendi um cigarro.
Edmundo Brandão
Sem comentários:
Enviar um comentário