terça-feira, 31 de julho de 2012

Labirinto Mental (II)


Caminhei inocuamente perante a estrada negra sob os meus pés. O alcatrão ardia dentro de mim, como um mundo paralelo. Qualquer coisa o podia fazer, numa noite escura e fria como aquela, iluminada pela lua pálida. Caminhei, vagueando, perdido no recear do meu ser, na insanidade que, lentamente, se apoderava de mim, consumindo as minhas nostálgicas memórias e resumindo-as a um mero nada. Caminhei, com um rumo mecânico às quatro paredes que me abrigavam do desconhecido, que me abrigavam do que eu ainda vivia, perdido na entidade esquecida do amor da minha vida.
E deixei-me cair sobre a velha cadeira de madeira, certificando-me que a mesma janela de madeira oca e escura continuava fechada para que reprimisse o “labirinto mental”, como ultimamente me habituara a chamar à situação do mundo análogo que a doença me impunha. A imagem daquela divisão nojentamente familiar rodopiava na minha mente, à medida que as cores se desvaneciam nas ilusões da minha morte parcial. Tentei agarrar-me ao assento, enquanto a minha cabeça latejava e me deixava cair de joelhos, ansiando por algo… alguém… e chorei, perdendo a noção do mundo.
O vulto da minha alma gémea assombrava-me. Os seus longos cabelos loiros continuavam a emanar a mesma fragrância enquanto evocava a altura em que os deixara percorrer os meus dedos pela última vez. Os seus olhos azuis ainda penetravam a minha alma, resumindo-me a lágrimas. Os seus olhos azuis continuavam a traduzir a fera com que lidara outrora, a besta de pessoa presa num corpo demasiado frágil para aguentar. O mesmo corpo que tantas vezes acariciara e possuíra com um cuidado imenso, aparando-lhe todas as quedas quando começara a desmoronar. Lembro-me do cheiro da sua pele, do toque dos seus lábios em ferida, da maneira como tremia descontroladamente, de como gritava nos sonhos, sem saber. Relembro a voz seca e doente, do olhar sombrio e repleto de vida, escondendo a enfermidade dentro de si, que a matava lentamente.
Sei do monstro que fui, dos perigos que a fiz debater, das dores que lhe causei. Lembro-me que fechava os olhos, talvez para chorar, quando me sentava no parapeito da janela, de como se encolhia em si para se proteger do assombro que sou, de como engolia as palavras e nunca, mas nunca dizia algo. E sei que a agarrava com demasiada força, que a beijava com demasiada vontade, que lhe falava demasiado e demasiado alto, que a deixava perdida e fraca, morrendo, demasiadas vezes.
E morrera. Partira.
O seu corpo estendia-se inerte no chão sem qualquer sinais de respiração, o seu corpo nú e parado, com os seus ossos débeis destacando-se na pele opaca e descolorida. Era o seu esqueleto, outrora igual, mas vivo. Sentia os olhos claros, completamente apagados e sem qualquer mudança, os seus lábios roxos, pálidos e fechados, como nunca os vira, o seu cabelo, agora baço, sem a energia que fluía… Parecia morta. Estava morta.
E eu acabara por morrer com ela.
Deitei-me a seu lado, olhei-a em desespero e beijei-lhe a face. Murmurei o seu nome, chamei-a. Agarrei o seu rosto e beijei-a. Chamei-a. Agarrei os seus braços com força, agitei-a em vão. Chamei-a, chamei-a a olhar para ela, chamei-a olhando o céu, chamei-a olhando a terra. Chamei, mil e uma vezes e não voltava! Não voltava para mim…
“Lamento… Lamento…”, sussurrei, enquanto enchia o chão com sangue. “Perdoa-me.”, falei, sujando-lhe o corpo com o meu sangue. “Volta”, gritei, caindo-me sobre ela e fechando os olhos.
Mas, acordei. E o amor da minha vida dormia na minha cama.
E eu chorei, admirando o mesmo sangue que vira no meu labirinto mental, inundando o meu corpo marcado.

Edmundo Brandão

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