terça-feira, 31 de julho de 2012

Alena Elfrith


No meio de algazarra que é uma velha taberna junto ao porto de uma cidade pequena mas agitada à noite, no meio das gargalhadas, das vozes profundas e do som de canecas a baterem umas nas outras, no meio do som de um piano de madeira velho, ouve-se um berro:
- Escutai!
O silêncio ainda demora algum tempo a alastrar-se.
- Escutai, repito! Está uma bela noite para uma das histórias e, oh, há tempo que ninguém tem a bravura de se pronunciar nestas belas noites de Lua amarela e cheiro salgado do mar.
Enquanto fala, uma figura de silhueta feminina levanta-se. De cabelos negros e pele suja, o seu sorriso de alguém atrevido faz-se notar por baixo de uns olhos grandes e escuros sem qualquer marca de idade. Estando já levantada, abre o sorriso e tira a espada para fora enquanto o salão todo eclode em interjeições de surpresa e espanto ao ver a arma que tanto simbolizava.
- Admirai, irmãos! O meu nome é Alena e outrora fui Alena Elfrith.
As interjeições acentuaram-se e nasceram murmúrios. A jovem acabara de pronunciar o nome de um dos piratas mais temidos há uns anos atrás, antes da sua morte. Bem, da sua suposta morte.
- Silêncio! Recordo-me do primeiro dia em que a minha vida tomou outro rumo e terei muito gosto em partilhá-la convosco, meus irmãos do mar. - Sorriu e fez uma vénia, tirando o chapéu com plumas e voltando a pô-lo mal se sentou. - Os meus dias de rebento eram passados a observar tudo o que se passava dentro do navio de meu pai que vós se certeza conheceis, Daniel Elfrith. Ouvia e via tudo o que acontecia, desde a distribuição de cargos por entre os marujos como conversas intimas sobre quem fornicou quem e até discussões de quem perde a cabeça no mar. Dormia ao lado de meu pai, nos melhores aposentos do navio e passava manhãs e tardes a escrever sentada no parapeito da janela do quarto que me dava vista para o mar rebelde mas belo. O mesmo mar que em noites se transformava em algo temeroso e raivoso e que me impedia de dormir ao ouvir gritos, sons assustadores e, sobretudo, a voz grave e poderosa de meu adorado pai. Era a voz de meu pai que não me deixava dormir.
Houve uma pausa de silêncio.
- Vós nem desconfiais do tormento que era ver o meu pai junto a mim com um sorriso amável e com olhos esmeralda cintilando para mim, não sabeis nem sequer o que era sentir o calor do seu corpo a pegar o meu ao colo nem de como era o sorriso tão real que ele me lançava como o seu riso sentido. Meu pai… Eu amava meu pai. Mas naquelas noites de tempestade, o meu pai tornava-se algo inexplicável: feroz, malvado, assustador, aterrador com a sua voz… pavorosa.
Ouviu-se um comentário:
- Ingénua.
Alena levantou-se rapidamente e gritou, irritada pela ignorância do individuo:
- Ingénua e inocente, canalha! Como eu disse, não passava de uma criança! – Levou a mão à espada.
Depois de inspirar fundo, sentou-se, expirando.
- Aquele navio era minha casa e eu nunca saía dele, nunca pisava terra firme e nunca fiz nada de útil para meu pai no navio nem sequer meti conversa com ninguém por iniciativa, apenas deixava que me falassem. Eu olhava de alto meu pai, ele era para mim um máximo modelo. Eu própria me tornei… pirata.
A palavra foi dita com hesitação e com um trago de arrependimento e como tal, a plateia teve uma reacção de medo e voltou a murmurar entre si.
Alena deixou-os vaguear na palavra pois sabia que tinha muito significado. Voltou a inspirar fundo e arrancou a caneca a um homem que se sentava ao pé de si sem sequer murmurar nada.
Este, estupefacto, olhou-a enquanto bebia e passados alguns minutos reagiu, olhando-a com raiva. Alena sorriu-lhe e continuou.
- Como vos estava a dizer, tomei o rumo de meu pai. Participei activamente nas suas viagens e comecei a tomar parte das decisões do navio. Admito que os meus primeiros cargos tratavam-se de limpezas simples e ao mesmo tempo sujas e complexas, de escoar água para fora nas tardes de chuva e ventos fortes, de levar mantimentos aos navegadores nas horas em que a fome falava mais alto… Com o tempo, tornei-me mulher.
Alena levantou-se. Mostrou o seu corpo e deu meia volta para que todos pudessem apreciar as suas curvas perfeitas e a sua cara exótica. Mostrou-se para que vissem a mulher que era.
- Sim, de facto estás uma mulher. – Afirmou o homem ao seu lado, rindo-se e comendo-a com os olhos.
A jovem cerrou o punho e simulou um murro, deixando o homem a tremer os olhos.
- Para vós, é vós. – Avançou – Sendo uma jovem mulher, fui subindo na escala das tarefas. Participei em várias lutas, ordenei movimentos a vários homens e pisei terra firme. Pisar terra firme era algo muito mais obscuro do que imaginava.
- Oh, vida pirata! – Alguém murmurou.
- Sim. Vida pirata. – Riu-se – Meu pai, entrava em casas desconhecidas sem pedir permissão. Roubava pobres e ricos, matava inocentes e culpados, queimava todas as provas. Meu pai, entrava em tabernas sombrias cheias de embriagados que mal sabia falar. Bebia com eles até ficar inconsciente, ria-se mais alto que todos e fornicava com qualquer uma. Vida pirata, chamais-lhe vós?
Ninguém respondeu.
- Pois eu juntei-me a ele. Matei muitos, roubei ainda mais, queimei provas. Destruí lares cómodos, famílias unidas, vidas preciosas. Destrui abrigos e sorrisos fracos e ganhei um belo saco cheio de milhares de moedas de ouro cintilantes, jóias de senhoras, dinheiro vivo, barras de metais precisos que tanto valiam, pedras preciosas e por aí além. Nessas tabernas, deixava-me seduzir por todos e escolhia o mais apresentável para passar a noite. De madrugada partia para roubar navios e destruí-los, como também matar os seus tripulantes. Eu divertia-me. Divertia-me bastante…
- Paguem-lhe um copo. – O homem ao seu lado interrompeu. – A história está a ser uma das melhores que já tivemos por muito tempo.
Chegou-lhe a caneca de cerveja e Alena sorriu e bebeu tudo de um trago.
- Vós estais a criar uma afeição enorme por mim.
- Estou. Ireis continuar?
- Sim. – Deu-lhe uma pancadinha nas gostas e riu-se. – Meus irmãos, nessas alturas eu era Alena Elfrith. Era temida pois era sombra de meu pai, um dos piratas mais perigosos e temidos também. Tão temido que quem o derrotasse era um deus e graças a isso sofri bastante. Era casualmente raptada, estrupada, violentada. Mas isso não me preocupava. Os marujos de meu pai ensinaram-me a lutar. Comecei sem armas, segui para a navalha e por fim, a espada. A espada sempre tinha sido uma paixão minha, tinha sido sempre algo que eu olhasse para cima mesmo que o reflexo do Sol me ferisse os olhos.
- Mostra-nos a tua!
Alena ergueu a espada num ápice que deixou todos receosos da distância entre eles e a sua lâmina curva e o punho dourado, já sem brilho, mas com várias caveiras cravadas e outros símbolos da pirataria. Girou o pulso para que a espada girasse também nas diferentes iluminações e ficou pensativa, sem qualquer expressão facial, a apreciar a espada.
- Alena? – O homem murmurou.
Alena olhou-lhe e pensativa, continuou a apreciar tudo o que lhe vinha diante dos olhos. O que lhe parecia ser um velho homem era na verdade um jovem adulto, sujo e com o rosto carregado mas olhos claros e cabelo de um loiro sujo machucado pelo sal e Sol que junto do seu tom de pele escuro denunciava o seu tempo a navegar ou pescar. Podia-se dizer que o seu rosto até era bonito.
- Esta espada – Voltou os olhos para a espada – é a espada de meu pai.
Arrumou a espada na bainha enquanto deixou que as pessoas da taberna que se começavam a juntar mais e a formar uma multidão maior murmuravam entre si.
- Foi-me dada no momento da sua morte…
- Oh, sim. Eu sei!
Um velho ergueu-se de uma mesa ao fundo e todos se voltaram para ele.
- Uma noite trágica para muitos, um belo sorriso para outros. As nuvens estavam escuras, os ventos sopravam como que se enraivados e a chuva caia sem medo e ferindo a pele nua. O céu gritava fortemente pelos trovões e fazia-se reinar pelos relâmpagos. Teu pai morreu numa tempestade… e supostamente…
- Eu também… - Alena oncluiu a frase.
- Nunca ninguém encontrou corpos.
- No dia seguinte, fui dar à margem de Cardiff.
- O que fizeste de ti?
- Resumidamente?
- Não… - Pediu o jovem ao seu lado.
- Dizei-me o vosso nome.
- Andrew.
- Imbecil. Eu conto como quiser.
Alena olhou em volta. Revirou os olhos várias vezes, apreciando a madeira gasta do balcão do bar vazio em que o próprio bartender se aproximou para escutar a sua história. Apreciou o piano sem pianista com algumas teclas já partidas e o tampo riscado. Ergueu a cabeça e apreciou mesas ao longe vazias com copos sujos e o chão imundo que seus pés pisavam. Voltou a baixar os olhos e apreciou quem a rodeava. Pessoas idosas, como jovens e até pequenas crianças estavam presentes. Homens com olhos de esfomeados e mulheres que fugiam ao olhar de Alena. As crianças olhavam-na com espanto.
- Acordei numa cama pequena. Nesse dia não me sentia muito bem e não me lembrava de nada. Levantei-me, olhando em volta, achando que me tinha embriagado e permanecido na casa de alguém que teve uma noite bastante calorosa. Abri a porta em silêncio e fui confrontada com um jovem como vós, Andrew.
Andrew sorriu.
- Descobri em pouco tempo porque estava lá. Um velho pescador tinha-me encontrado na praia, desfeita, magoada, molhada e poderia muito bem arranjar mil e um adjectivos para me descrever. A sua mulher cuidou de mim, vestiu-me e alimentou-me dando abrigo e tudo o que eu necessitasse. Eu continuava sem memória.
- Conta-nos quem era o jovem! – Pediu uma rapariga.
- Estais interessada em saber precisamente o quê?
- Tudo!
- Choquei com ele e baixei os olhos. Vivemos dias e noites juntos debaixo do mesmo tecto e por fim houve contacto, houve palavras, comunicação e por aí em diante. Chamava-se Arthur e estudava nas manhãs e divertia-se a escrever nas tardes de Verão em vez de sair à rua e lutar com outros jovens ou galar raparigas. Arthur nunca me tinha falado, nunca me tinha perguntado se eu já me lembrava de alguma coisa e eu também nunca tive a coragem para lhe dirigir a palavra. Mas com um texto dele na minha mão, julgava que o entendia como ninguém. Lia tudo o que escrevia sem ele perceber, lia toda a vida dele descrita em grandes e pequenas perífrases e pleonasmos.
- O que aconteceu?
- Arthur apanhou-me a “lê-lo”. – Gesticulou as aspas com os dedos. – Puniu-me com os olhos e disse-me que não queria que o invadisse. Eu limitei-me a elogiá-lo.
- E então?
- Começámos a falar bastante e a partilhar pontos de vista e informações que contínhamos. Falávamos desde como o dia estava até como eram as ondas do mar, os raios de Sol num dia de chuva e filosofias lamechas de um casal invulgar de namorados.
- Escrevíamos poemas e líamos um ao outro, improvisávamos no momento e comentávamos a coisa mais simples tornando-a em algo colossalmente composto. Lemos histórias, contos, glossários e todos os livros da pequena biblioteca da cidade juntos. Pintámos o oceano, os rochedos, a areia, pintámo-nos um ao outro. Arthur tocou-me serenadas de amor, de tristeza, de raiva, de medo, de felicidade, de esperança e de todos os sentimentos que possuía para que eu soubesse o que ele sentia.
Ouviu-se um suspiro.
- Mas este clima próspero pouco demorou.
- Explica-te – Alguém pediu.
- Os meus sonhos foram invadidos pelas minhas memórias embrumadas. Achava-os apenas pesadelos mas a minha vida foi recriada na minha mente. Todas as noites passadas a matar, todos os meus gemidos e os gemidos aos meus ouvidos perseguiram-me. Pessoas falavam comigo e fizeram-me querer tapar os ouvidos e deixar de ouvir a melodia de Arthur. A minha noite tornou-se um tormento que passou a assombrar-me nos meus dias perfeitos.
Parou por um pouco e olhou para a porta, com vontade de deixar a história a meio e sair para se afogar nas lágrimas que começavam a teimar em sair. Levantou a cabeça para as impedir e pediu um copo de vinho que o bartender foi a correr para a servir.
Ficaram o tempo todo do copo ser servido a olhar para o nada. Alena continuava fixada no tecto e quando o copo chegou, não esperou e mesmo com as mãos a tremer ergueu o copo e num trago esvaziou-o.
- Sonhei com a morte de meu pai e aí soube que era pura realidade.
- Contaste a Arthur?
- Não. Escondi-lhe até ficar corroída por dentro ao ponto de não sair, não falar, não escrever nem pintar nem ouvir nada que fosse som. E, vivendo na mesma casa que ele, desconfiou. Insistiu. E eu completamente louca tanto por desespero como por amor, caí em lágrimas e desabafei.
Silêncio.
Silêncio.
Muito mais silêncio.
- Bem, tive que sair da cidade antes que Arthur me matasse de raiva. Não acreditava em mim quando lhe dizia que tinha estado sem memória, deixou de acreditar em tudo o que lhe disse e escrevi e nas minhas emoções expressas nos quadros e desenhos.
Alena riu-se.
- Mudaste-te para cá…
- Não. Tenho estado a viajar pelos mares, a ser pirata sem tripulação e sem matar. Tenho vivido à noite a beber e a fornicar e a dormir de dia enquanto o Sol brilha para me preparar para mais uma noite.
Alena riu-se mais.
- Alena…
- Não… Na verdade, tenho enchido o vazio de Arthur com o álcool, tenho tentado substituir o calor do seu corpo com estranhos de um bar num estado mais miserável que o meu e tenho substituído a escrita e a pintura com a escuridão do meu coma e sono.
Silêncio.
- Chama-me louca! – Gritou. – Chama-me cabra e diz-me tudo aquilo que sou.
Alena levantou-se com os olhos em fogo, caindo em lágrimas. A sua voz tornou-se rouca mas repetiu as palavras algumas vezes até se sentou rapidamente e colou as mãos à cara e o seu choro ecoou pela sala toda.

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